Reflexões sobre a intersecção entre
democracia e capitalismo, e a necessidade de lutas sociais para evitar a
barbárie.
O último momento em que houve grande
confiança no progresso da civilização sob as salvaguardas democráticas foi o
início do século 20, mas aí veio a 1ª guerra mundial e teve o efeito de um
banho de água fria no otimismo que recentes avanços científicos e tecnológicos
haviam despertado.
Isto porque o conflito de 1914/1918 foi um
pesadelo. Os dois lados escavaram trincheiras para bloquear o inimigo e
conseguiram seu intento, imobilizando-se mutuamente. Então, dia após dia
lançavam suas tropas em tentativas temerárias de quebrar o equilíbrio de
forças, fracassavam e voltavam a suas posições, após sofrerem baixas tão
elevadas quanto inúteis. Dava a impressão de que a carnificina se prolongaria
indefinidamente.
Foram, portanto, levadas de roldão aquelas
fugazes esperanças e o sentimento dominante voltou a ser o de que a barbárie
continuava à espreita e o homem, sempre propenso a reassumir o papel de lobo do
homem.
Certo quem estava era Edgar Allan Poe, ao
constatar que o horror e a fatalidade marcavam a história da humanidade ao
longo dos tempos. dispensando-o de datar a história trágica que iria contar,
pois poderia ter acontecido em qualquer época.
Desde então o que se viu foi um festival de
horrores: resiliências do colonialismo; fascismo; nazismo; o comunismo real (na
verdade um capitalismo de estado intrinsecamente autoritário que horrorizaria
Marx); um novo conflito mundial; o holocausto dos judeus e o posterior
holocausto dos palestinos; a utilização de bombas atômicas contra um Japão na
iminência de render-se; a guerra fria; as ditaduras bestiais brotando como
cogumelos nas Américas Central e do Sul durante os anos de chumbo; a África
quase toda abandonada à miséria, fome e disputas tribais, etc.
Mas, quando a crise dos misseis cubanos em
1962 colocou a humanidade a um passo da extinção durante três semanas, o susto
foi tão grande que reavivou a vontade de viver de expressivos contingentes
humanos, principalmente os jovens.
A esquerda atravessou então seu grande
momento, com os movimentos em prol dos direitos civis nos EUA, seguidos pela
também vitoriosa resistência à Guerra do Vietnã; as Primaveras de Praga e de
Paris; a contestação jovem nos EUA e em vários países europeus e americanos.
Durante cerca de 10 anos muitos sonharam e
muitos tentaram fazer com que os ganhos alcançados pelas gentes no processo
produtivo passassem a beneficiar a sociedade como um todo, libertando-a dos
grilhões da necessidade, ao invés de serem usurpados por uma minoria de
bilionários e outros parasitas.
Mas a maioria silenciosa (porque não tinha
o que dizer) acabou prevalecendo sobre as minorias que tentavam escancarar as
portas da percepção e desbloquearem os afetos para engendrar um futuro
paradisíaco.
Aquele foi o momento no qual o potencial
produtivo da humanidade como um todo, por força dos avanços científicos e
tecnológicos concretizados, finalmente possibilitava que se proporcionasse o
suficiente, em termos materiais, para a realização plena de todos os seres
humanos. Ou seja, depois de uma trajetória de milênios, finalmente podia ser
transposta a barreira da necessidade.
Mas, para que o feito beneficiasse a todos
e cada um dos habitantes de nosso planeta, a prioridade econômica suprema teria
de ser o bem comum e não a perpetuação e continuo aumento da fortuna dos
ricaços em detrimento da grande maioria dos seres humanos, condenada à miséria
ou a estágios intermediários de insatisfação por nunca conseguir satisfazer
totalmente suas expectativas, insufladas até o paroxismo pela indústria cultural.
A desigualdade econômica, contudo, coloca à
disposição dos privilegiados uma gama enorme de recursos para manterem
subjugados os que estavam abaixo deles, contando para tanto com dois trunfos
poderosíssimos: os fetiches do consumismo e a lavagem cerebral dos cada vez
mais aprimorados meios de comunicação de massa (daí o empenho do Trump em
garantir total liberdade de empulhação para as big techs).
Ao sair vitoriosa no embate contra as
proposições da contracultura e as barricadas dos sonhadores do absoluto, a
sociedade de consumo instaurou uma nova ordem na qual o consumidor tem sempre
razão mesmo quando não tem nenhuma razão.
E a disseminação da internet por todas as
classes de renda permitiu que aqueles que não tinham nenhuma razão fizessem
ouvir estridentemente seu besteirol, superando, por serem bem mais numerosos,
os que se preparavam para dizer coisa com coisa.
A idiotia religiosa foi fortemente
alavancada em detrimento do conhecimento científico e a lei do talião cada vez
mais substituiu a empatia, a compaixão e a tolerância, pois é mais fácil
exterminar os excluídos que cedem à tentação de tomar pela força o que já não
conseguem obter com trabalho do que reeducá-los e dar-lhes acesso, ainda que
limitado, aos oásis do consumo.
O capitalismo agoniza porque só funciona a
contento havendo continuo crescimento econômico, o que é impossível dadas as
contradições que condenam contingentes cada vez mais amplos de seres humanos à
miséria e à exclusão social.
A democracia agoniza porque a minoria de
privilegiados já não conta apenas com a força bruta para sufocar os anseios da
maioria de explorados. Eventualmente ainda recorre a golpes de estado como o
que Jair Bolsonaro tentou (só fracassando por crassa incompetência dos
conspiradores que reuniu e desmesurada covardia pessoal), mas consegue também
conquistar maioria no Executivo e no Legislativo pelo voto popular, mesmo
quando prega ostensivamente mentiras cabeludas e desumanidade extremada.
Como resistirmos à nova barbárie
ultradireitista? É o que teremos de aprender em conjunto, à medida que formos
conseguindo vitórias expressivas contra essa outra forma de infestação que, de
tão nefasta, lembra até a pandemia de covid 19.
Uma coisa é certa: a democracia já não nos
serve mais como trincheira, pois é cada vez maior a facilidade com que o
inimigo ocupa tal bastião.
Não podemos desconsiderar o fato de que,
apesar de Donald Trump haver tentado um autogolpe com o ataque ao Capitólio em
janeiro de 2021, conseguiu escapar da punição que se impunha simplesmente por
haver, com suas vaquinhas de presépio, obtido uma maioria espúria na Suprema
Corte.
A decisão unânime de inocentar Trump pelo
que ele era clamorosamente culpado faz crer que nem Hitler seria condenado por
esses fiéis escudeiros fantasiados com togas. E o mandato que Trump não deveria
estar exercendo é um rosário de ilegalidades gritantes mas toleradas, conforme
os brasileiros estamos constatando.
Mais: não devemos nos
tranquilizar com o fracasso do autogolpe bolsonarista pois, no frigir dos ovos,
o que impediu o sucesso da conspiração foi ela não haver conseguido cooptar os
generais. Se dependesse do restante da oficialidade, o mito não estaria
reduzido ao mico surtado que a CNN expôs à execração pública.
A direita que usa os talheres deverá
prevalecer nas eleições de 2026 e 2028, tendo, contudo, a direita que agarra a
comida com as patas como coadjuvante. E é só. Conseguimos apenas adiar por
alguns anos a tomada do poder pelos celerados, cuja faina para transformar o
Brasil num hospício nem de longe cessou. O bananinha 03 está aí para comprovar.
E quanto mais a crise estrutural da
economia capitalista agravar-se, provavelmente em sinergia com os estragos
crescentes das alterações climáticas, mais o terreno ficará propício para a
truculência obtusa dos ultradireitistas.
Seguindo o exemplo do seu precursor Hitler
na década de 1930, eles avançam como rolos compressores e, utilizando
exigências falaciosas, blefes e demonstrações de força, vão submetendo
implacavelmente os Poderes de várias democracias.
A opção que nos resta é voltarmos a travar
as lutas sociais que nos permitam acumularmos força e mobilizarmos cada vez
mais efetivos, percorrendo trajetória inversa à adotada pelo PT nas últimas
décadas, quando o partido concentrou seus melhores esforços nas disputas
eleitorais e chegou ao cúmulo de resignar-se à tomada da avenida Paulista pela
direita quando do Fora Dilma!
(O inimigo, no entanto, não passava de um
tigre do papel e bastaram estudantes secundaristas e torcedores organizados do
Corinthians para o escorraçarem na fase do Fora Bolsonaro!)
Só teremos alguma chance de êxito nas
atuais circunstâncias se conseguirmos convencer os cidadãos comuns de que já
somos e cada vez mais seremos a alternativa à barbárie.
Daí ser fundamental termos sempre em mente
que a violência deve partir apenas do inimigo, mas precisamos estar preparados
para resistir a ela. Cabe-nos dar exemplo de civilidade, mas não de
pusilanimidade.
Texto: Por Celso Lungaretti, jornalista, escritor, militante, editor do blog Náufrago da Utopia